segunda-feira, 2 de julho de 2012

Chico Buarque está cansado







Francisco Buarque de Hollanda envelheceu. Mal, comparado ao Chico Buarque das antigas, mas, ainda assim, muito bem, se relacionado à nova safra de cantores da MPB que oferecem a um público, cada vez mais habituado aos downloads de discos recém-lançados, mais do mesmo. Ele bem que tentou voltar aos palcos de maneira discreta, mas a imprensa tratou de fazer barulho em torno desse retorno. No CD homônimo, “Chico”, lançado pela gravadora “Biscoito Fino”, ele aposta na simplicidade, embora o novo trabalho seja, mesmo, sobre nostalgia.


As dez faixas do aguardado disco, considerado por muitos uma obra genial, com participações especiais de Thais Gulin, em "Se Eu Soubesse", de Wilson das Neves, em "Sou Eu", e João Bosco, em "Sinhá", não apresentam o frescor de antigamente do cantor e compositor. O lançamento do último CD evidenciou que o Chico que lançou este novo trabalho não é mais o mesmo de antigamente, mas nem por isso deixa de ser bom. 


A impressão que passa, ao longo das dez faixas, é que o homem que gravou 53 discos (contando as coletâneas), escreveu sete livros, sendo três romances contemplados com o Prêmio Jabuti de Literatura, cinco peças teatrais aclamadas pela crítica e tem quatro filmes no currículo, está cansado. 


“Chico é letra”, poderiam responder alguns, “ele é mais que voz”, completariam outros, mas estilisticamente, é nesse Chico Buarque, engessado pela genialidade que lhe é atribuída, que se vê a necessidade de um artista se arriscar mais, senão, a exemplo dele, pode ficar estagnado. 


Não há surpresas no “Chico” atual, muito menos diferenças, se o cantor e compositor for comparado ao artista dos últimos discos. É certo que continuam, de maneira tão linear como o modo em que ele administra a sua imagem, a delicadeza das composições, o samba, a valsa, a marcha e a voz que não é exatamente um primor, mas muita gente releva porque as letras continuam maravilhosas.


No lançamento de 2011, é possível enxergar, embora bem de longe, o mesmo que compôs “Ópera do Malandro”, uma das obras mais relevantes para a Música Popular Brasileira, ou mesmo a sua obra prima, “O Grande Circo Místico”, considerado um dos maiores e mais completos espetáculos já realizados, inspirado no poema do modernista Jorge de Lima, em parceria com Edu Lobo.


Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, Chico começou a carreira na década de 60, ficando famoso seis anos depois, quando venceu o Festival de Música Popular Brasileira, com a canção “A Banda”. Socialista, ameaçado pelos militares, ele se autoexilou na Itália em 1969, pela crescente repressão da ditadura no Brasil. Quando retornou, um ano depois, se tornou um dos artistas mais influentes no cenário da crítica política e da luta pela democratização brasileira.


Por isso, é difícil reconhecer um homem com essa trajetória num trabalho tão ameno, por vezes preguiçoso, onde singelo é a palavra de ordem. “Querido Diário”, a melhor faixa desse novo trabalho, não por acaso abre o disco e, em tom autobiográfico, fala do homem de meia-idade solitário que descobre o amor. Há, nessa canção, um verso que gerou polêmica. 


Alguns amaram, outros odiaram a frase "amar uma mulher sem orifício" contida na canção, despertando a ira conservadora de alguns tantos. Talvez a mesma raiva da época dos militares, num país que hoje censura abertura de novela exibida livremente 18 anos atrás, como no caso de “Mulheres de Areia”, de Ivani Ribeiro. A emissora avaliou, segundo comunicado, que a abertura da novela, exibida em 1993, com uma modelo nua, “não era compatível com os padrões morais atuais do país”. Um retrocesso que dá ponto ao conservadorismo, ou “amar uma mulher sem orifício” é realmente grosseiro e ofensivo à alma feminina?


É público e notório que Chico Buarque sempre foi valorizado pelas mulheres e muito mais admirado pelo sexo feminino exatamente porque, segundo elas próprias, consegue penetrar profundamente na alma feminina, com canções no porte de “Atrás da Porta”, “Folhetim” e “Olhos nos Olhos”. Exatamente por isso, “amar uma mulher sem orifícios” pode falar do amor em toda a sua plenitude, quando o sexo não está envolvido e o sentimento está acima da paixão e de qualquer interesse carnal. Mas também resume o corpo feminino a um mero objeto sexual. Na tentativa de colocar uma mulher no pedestal, enquanto tentou fazer um elogio que foi, por muitos, mal interpretado, Chico sabia que geraria polêmica. Em tempos de pirataria, pode gerar um interesse a mais entre os ouvintes e se revelar, aos poucos, uma ação lucrativa.


A preocupação com a pirataria, neste caso, merece um parênteses. O selo “Biscoito Fino”, um dos mais preocupados com o download ilegal, promoveu uma pré-venda em seu site para minimizar os efeitos da pirataria, lançando o endereço virtual Chico Bastidores (www.chicobastidores.com.br) com o intuito de instigar o interesse dos internautas, com informações sobre bastidores e entrevistas. Chico, no meio disso tudo e avesso à internet, podendo acessar, se muito, um e-mail, parece que caiu de paraquedas nessa guerrilha e segue com o seu personagem no disco novo.


Muitas vezes, ele parece um velhinho resignado, repetitivo, que se resignou com a ideia de envelhecer e fica batendo na tecla do passar dos anos e da velhice. Ao contrário de outros cantores, como Caetano Veloso, que tem lançado bons trabalhos sobre o mesmo tema, mas morrendo de raiva, o que dá uma certa graça e também um respiro às letras. 


Chico acha graça e, num momento de espontaneidade durante uma entrevista ao site que divulga o novo trabalho, ri às pampas: “Disseram: o que este velho está fazendo? (risos) Você não pode ficar com raiva de quem tem raiva, quem tem, deixa pra lá (risos)”.


Esse senso de humor, presente, sobretudo, nesta obra de Chico Buarque, costura como ninguém a literatura nos arranjos. O mérito é do maestro Luiz Cláudio Ramos, parceiro de Chico durante muitos anos, com inegável valor por toda sua trajetória artística, mas que colabora para que o disco tenha um ranço de repetição. É como se o ouvinte tivesse um déjà-vu e o maestro batendo cartão de ponto em um emprego público e executando sua função no piloto automático.


Em “Essa Pequena”, fala sobre outro homem maduro, de cabelo grisalho, que se envolve com uma mulher mais jovem de fios “cor de abóbora”. "Sinto que vou penar com essa pequena, mas o blues já valeu a pena", afirma a letra. Coincidência ou autobiografia?


Na faixa “Se eu Soubesse”, Chico faz um dueto com a cantora Thais Gulin, ao que tudo indica, a mais recente namorada do poeta. O dueto gira em torno de um homem e uma mulher que refletem sobre as atitudes que os levaram até o exato momento em que se conheceram. "Mas acontece que eu sorri para ti, e aí, larari, lariri, por aí", cantam e, talvez, formem a onomatopéia mais bem colocada da MPB. 


As desilusões de um homem calejado, com erros e acertos cometidos vida afora, também estão no disco. Em tom confessional, “Sem você 2” mostra o dilema do apaixonado que perdeu a mulher amada, mas oscila entre o ganho de liberdade e a perda do relacionamento: "O tempo é todo meu, dá até pra ver o futebol", choraminga. Em “Tipo Baião”, há outro personagem, embora mais um típico apaixonado do repertório de Chico: “Meu coração que você sem pensar ora brinca de inflar, ora esmaga igual que nem fole de acordeão”.


A nostalgia que dá o tom de toda a obra fica mais evidente na valsa “Nina”, em que Buarque fala de uma viagem a Moscou, da vodca e da própria canção, e também em “Barracafunda”, que trata de outro tipo de saudade, as que estão no formato de lembranças confusas, tudo na levada típica do samba carioca, tão conhecido, mas mesmo assim não enfadonho, na discografia de Chico. Não se sabe quais as músicas desse disco que entrarão para as “clássicas” do repertório dele, mas quem se importa? 


As boas canções se completam com “Rubato” que, em clima de marchinha, ironiza compositores que “se apropriam” de músicas de outros, e “retocam” versos "com o maior talento". E reflete sobre a alegria na gafieira de “'Sou Eu”, composição em parceria com Ivan Lins, cantada com Wilson Neves. Companheiro das antigas de Chico, Wilson deixa registrado, neste disco, uma voz absolutamente em sintonia com o estilo dessa canção. Outra uma grata surpresa.


Mais que uma obra autoral, que pode resumir os erros e acertos de um homem em dez faixas muito ou pouco inspiradas, é um disco honesto, que aposta em uma simplicidade real, mas impossível, quando quem está por trás das canções é Chico Buarque. 


Trata das contradições de um homem que pode ter vestido a camisa de “tradutor da alma feminina” durante muito tempo, mas que não hesita em magoá-las com um verso que pode gerar várias interpretações. É também sobre o mesmo homem que tem um posicionamento simpático ao Partido dos Trabalhadores e, em especial, à figura do ex-presidente Lula, e por isso mesmo, é muitas vezes afastado de alguns setores da classe intelectual, embora, ao mesmo tempo, ninguém possa negar a grandiosidade de sua obra como compositor, poeta e até mesmo como escritor, embora haja certa resistência à qualidade da obra literária de Chico Buarque.


Talvez esta seja a obra mais interessante de Chico Buarque desde “Paratodos”, o disco de 1993. A conclusão é que Chico Buarque continua bom e os seus versos, embora em um trabalho mediano para o que se espera dele, estão, como sempre, acima da média. Há poesia espalhada por todo o disco, como os versos "não gingava a saia", "não dormia nua", comprovando que ele continua sensível e singelo...
Mas Chico não é um gênio... Tampouco superestimado, ele é realmente bom. Mas, com esse novo trabalho, assinala que é resultado da ausência de grandes poetas, de grandes compositores no cenário da MPB. Se houvesse outros, ele não estaria neste patamar. Com o agravante de que está cansado... porque o que se faz, e o que temos de melhor na música nacional, ainda vem dele.


Publicado originalmente em abril de 2012 no Resenhando.com